segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Aquilo que não me mata, só me fortalece - Friedrich Nietzsche

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

a quem há de chegar

a quem há de chegar essa é a frase que engulo todos os dias com um copo dágua. a quem há de chegar há muito que se foi embora. a quem há de chegar mais um fraco ditando palavras vagabundas a respeito do amor. a quem há de chegar que seja mais eterno que duro... a quem há de chegar para me tirar desse mundo de nuvens vermelhas e chuvas de gelo, quente como um beijo seco de verão.

a quem a de chegar

terça-feira, 10 de novembro de 2009

UM DIA BOM
O nome dela era Márcia, tinha nascido assim, mas sentia que poderia ser Agatha, Myriam assim mesmo com y, Pietra como nas novelas das seis.
Morava no subúrbio, não tinha muitas chances de crescer não... Alias tinha de se contentar porque era sobrevivente de muitas coisas: da fome que atravessou quando era bebê em formação no ventre de sua mãe; da maldição da escola publica, da casa de três cômodos que dividia com cinco pessoas e dos possíveis abusos que provavelmente poderia ter sido acometida, mas que não aconteceram. Não era bonita nem feia, lembrava um pouco o personagem de Macabéia de Clarice. Mas era mais esperta que ela. Pelo menos pensava que era. Não tinha grandes aspirações na vida não. Pensava em ser feliz. Não sabia como, mas pensava que era possível. Estudava, não sabia também porque, mas sabia que aquilo seria importante. Não saía da vidinha que tinha, por que não aprendeu a questionar.
Márcia pensava em tudo: primeiro queria se casar de véu e grinalda na pequena e mofada igreja antiga do bairro próxima a linha de trem; em se tornar uma princesa; em colocar silicone; em viajar e se apaixonar por um estrangeiro qualquer que a tiraria daquela miséria que vivia.
Passava assim os dias e as horas a transitar pelas cidades em que morava indo para o trabalho de faxineira no centro da cidade. Olhava tudo... Pensando no grande dia. Queria ser livre, alias, pensava ela ser livre, até que sempre, o ônibus a tirava desse sonho quando não parava no ponto e a deixava ali: estacada, parada e com raiva. Tinha de caminhar olhando a paisagem vermelha da chaminé da Petrobras que vomitava fogo, ouvindo os barulhos do trem, das fábricas de reciclagem e da neblina de poluição, mas sentia-se viva. Parecia protegida. Chegava em casa e comia, tomava banho, sentava em frente a televisão para assistir à novela: lá tinha uma personagem, negra como ela, mas não era pobre, era uma negra rica, modelo, viajava o mundo e era bem amada.
Ao seu redor, passava o olho e não gostava do que viu: uma TV antiga, uma gaiola com dois papagaios, uma geladeira velha e vermelha, um retrato de Jesus crucificado que mexia os olhos, vindo do Paraguai ou da China, não sabia ao certo. Sabia que podia ser mais que aquele lugar a fazia acreditar que não. Não queria morrer na praia embora o seu cotidiano a empurrasse pra isso.
Namorava, dizia que amava, mas não sabia o que era amor. Tinha um cara que a fazia feliz de vez em quando, feliz no sexo, isso mesmo. Era negro, ralava muito também, via a saída de sua vida na formação de uma família, indo aos domingos na igreja e nas sextas ia pro boteco e jogava sinuca... Era bonito, como os negros pintados por Portinari, lábios grandes, mãos e pés enormes, além da força viril que a fazia fêmea em seus braços. Era o recurso animalesco que a tirava da realidade por vezes, a consumia fazendo-a ferver e depois acabava. E então chegava a segunda-feira, estava tudo de volta.
Conseguiu então, através de um programa de inclusão do governo, estudar numa oficina de artes. Não sabia nada sobre aquilo, mas era de graça, e o tempo que tinha entre as faxinas e a sua ida para casa não iria interferir no curso. Tomou conhecimento de outro mundo que poderia ser uma salvação para ela. Ousou... Foi até lá, queria ver o que era aquelas aulas, além de ser de graça, ganhava o vale-transporte para ir embora.
Quase se via sem fala perante o grupo, lembrou-se do pai que só trabalhava e falava que pobre não tinha vez, o deixou lá atrás: guardado no passado.
Começaram as aulas: história da arte, pintura, desenho, mal sabia o que era aquele universo, pela primeira vez viu coisas bonitas e que não tinha visto antes, esquecia o bairro empoeirado que morava.
Sentia-se valorizada, como nas faxinas que fazia: arrumava a casa dos outros como se fosse a sua, pensava e fazia de conta que aquele luxo todo era seu, deixava tudo como se fosse para ela: limpo, arrumado, harmonizado. Mas ali era diferente: criava coisas no papel e tudo que fazia ficava registrado e notado, de uma forma que não sabia que existia, mas tinha uma fantasia ali, parada, esperando. Começava a se entrosar com a turma: mulheres com depressão e na menopausa; velhos anarquistas e sindicalistas aposentados; adolescentes pirados e perdidos sem rumo; moças que estavam na faculdade e maridos surtados indicados por médicos psiquiátricos e pessoas comuns.
Começava a ver poesia em tudo que a cercava. Viu que aquele lugar feio e vermelho que morava poderia ser belo, poético e caótico. Que o ônibus e o trajeto para a casa eram bonitos também.
Esqueceu-se pela primeira vez dos desafetos e do namorado... Esqueceu da infância medíocre, dos domingos na rua da feirinha e do supermercado abarrotados de gente fazendo compra e do churrasco na laje, da bebedeira do fim de semana e do ônibus lotado na segunda-feira com ar alcoolizado pelos passageiros.
O mundo agora havia se ampliado nas imagens do Renascimento, Barroco, na loucura e questionamentos da arte contemporânea, no cinema de Fellini, Glauber Rocha e nas aulas no Parque Municipal e na Praça da Estação. Sentia o coração se aflorar para um mundo novo, como se abrisse uma nova dimensão de cores, texturas, poesias e criação. Começou a ler e a escrever sobre tudo que via. As faxinas agora tinham ampliado e quase todas as mulheres do condomínio queriam que ela fizesse o trabalho pesado, ela via isso como uma possibilidade maior de entrar um dinheiro para comprar material de pintura, papel, pincéis. Começava a redecorar a casa que dividia com outras cinco pessoas da família, que achava tudo aquilo uma bobagem. Jogou fora a imagem do Cristo que mexia o olho vindo do Paraguai, achava aquilo agora horroroso e kitchen.  Até os cabelos que eram tratados com Henê Maru e alisados a força, começou a deixá-los natural black, se sentia bonita assim.
Sabia que seu esforço poderia ser recompensado com conhecimento. Era a primeira a chegar à turma e uma das últimas a sair. Devorava os livros que o professor trazia, pedia emprestado, levava para casa, sentia-se muito, muito feliz. Já pensava em vestibular.
Mas alegria de pobre dura pouco. O programa ficou paralisado por falta de verba. Ela então voltou àquela modorra de antigamente. Tentava manter o ritmo de esforço e criação que imperava há um ano. Queria tudo e tinha pouco, mas o tudo era pouco também: queria só estudar, ter conhecimento. Engolir o mundo da arte porque começava a entender que só ela mantinha viva a presença do homem na eternidade.  E sua eternidade se resumia às vezes a oito horas de trabalho braçal, o trajeto dos ônibus que pegava, e a ilusão de um futuro melhor. Futuro não precisava ser muita coisa não: estudar e ter conhecimento, nem precisaria viajar, ficaria feliz se a possibilidade de mudar de lugar, de cidade e de casa fosse uma realidade. Tentava, tentava e tentava, tinha a impressão que tudo estava mudando, mas depois acordava.
Via agora tudo que fazia com uma canseira que não tinha tamanho: fazia tudo que podia, mas parecia que o dinheiro que ganhava não dava para nada. Via que as madames para as quais trabalhavam estavam muito mais ricas e perfumadas e ela sem aumento; o dinheiro não dava pra nada além de comprar comida; a casa parecia mais precária: o amianto do telhado tinha rachado, o piso de taco de madeira estava cheio de cupim, o chuveiro tinha dezenas de fios desencapados, o quintal parecia um depósito de capim, seus desenhos e trabalhos ficavam cada dia mais amarelados e perdidos porque tinha de se virar e não tinha tempo mais para se entregar ao que gostava.
Não tinha mais motivação.  Sentia um escárnio grande ao entrar no ônibus de manhã, olhava a todos com desprezo, como se todos eles tivessem culpa de serem burros, de pensar em procriar e ganhar só o pão de cada dia, e ficar feliz com isso. Chorava no ônibus de tanta indignação, e com um agravante: a violência.  
O trajeto do ônibus se resumia a Via Expressa e a noite no caminho de volta  ele ficava um pouco mais vazio, esperava o horário de pico passar para ir embora, para não ter de encarar aqueles miseráveis com sorrisos e historinhas banais a respeito de seus empregos e da vida dos patrões: sentia-se como se estivesse num navio negreiro contemporâneo.
Foi ai que o infortúnio escreveu mais um capitulo na sua repugnante vida ruim: um assalto! Uma dupla de adolescentes: usando blusas dos Racionais MC´S, de cabelos amarelos, possíveis viciados da desgraça do crack, de armas nas mãos e havaianas nos pés. Anunciaram o assalto. Foram recolhendo tudo que viam: celulares ultrapassados, vale-transporte dos passageiros porque o trocador havia guardado os dele, por sorte sua ou da empresa, no cofrinho do ônibus; sacolas de compras da Marisa e C&A. Espancaram uma senhora que estava sentada no banco da frente porque ela não queria lhe entregar sua sacola de plástico. Os dois fizeram um arrastão no ônibus, além do roubo, a humilhação, pois todos eram iguais na desgraça os passageiros e os ladrões: estúpidos, famintos e viciados. Quando chegaram perto de Márcia para levarem seus únicos dez reais, por que era fim de mês, eles disseram: “Anda sua vagabunda me passa ai tudo o que você tem!” o ódio a tomou inteira, olhou para aquela fôrma mal feita de humano, para aquele rosto coberto de espinhas e os olhos vermelhos de adrenalina e crack, queria matá-lo ali mesmo no piso cheio de chicletes pregado e sujo de terra vermelha do ônibus... Mas teve medo, aliás, o medo a tomou inteira por causa da arma, e das mãos trêmulas do ladrão. Entregou os dez reais para o adolescente magrelo e que se achava o Fernandinho Beira-Mar em sua onipotência marginal. Não carregava bolsa, tirou do bolso a nota mofada e a entregou relutante.
Sentiu ódio demais: não tinha coragem de tirar nada de ninguém, nem quando as patroas lhe davam as sacolas de pães dormidos, sabia que podia levar para casa, mas sempre pedia, numa obediência e honestidade burra que só os pobres são forjados a ter desde a infância. “Como aqueles dois tinham coragem para fazer aquilo?” Coragem. Essa era a palavra que talvez faltasse para tirá-la daquela vida... Daquela desgraça de vida! Pensou que sendo corajosa, poderia ter ido mais além do que a linha de trem, dos ônibus e das faxinas.
Não lembrava de que ela também era fruto de uma desigualdade social e econômica que confinavam a maioria das pessoas a guetos enterrados na poeira e nas periferias sem nada do poder publico. Sentiu-se extremamente desamparada. Os Ladrões se foram, o motorista seguiu viajem até o 18º Batalhão, onde foram desprezadamente amparados pelos policiais de plantão que não fizeram nada além de burrocratizar o procedimento de registrar a ocorrência do roubo, registrar os bens pessoais surrupiados pela dupla. E os dez reais? Pensou Márcia e pela primeira vez ousou perguntar para um dos policia, “não podemos fazer nada!” Ódio latente, choro contido, a vergonha de ser pobre a tomou inteira porque se ela fosse rica e se estivesse num bairro nobre o procedimento seria outro. Engoliu aquilo tudo com mágoa. Chegou em casa duas horas mais tarde, foi a conta dela tomar banho, engolir um feijão com arroz, ovo e tentou dormir pra acordar de madrugada para trabalhar no outro dia, mas não conseguiu.
A indignação era muita, chorou por umas duas horas, pensou, pensou e dormiu.
Cinco da manhã o relógio despertou, era horário de verão, ainda estava escuro, o corpo e os olhos doíam. Um arrependimento de ser pobre a abateu por inteira. Desligou o relógio, virou para o canto da cama velha e dormiu. Pela primeira vez sentia que as rédeas de sua vida lhe pertenciam: não iria fazer faxina aquele dia, não queria encarar o apartamento daquela mulher burguesa e branca que fazia filantropia porque era bom para a sua pele; sentia nojo dela, “mulher porca branca!” pensou, mas ela tinha dinheiro; na sua futilidade ela tinha tudo que Márcia queria: tinha estudado arte, era filha de intelectuais de classe média alta, podia pagar para ir a cinemas, comprar livros, viajar e trabalhava numa ONG, ou seja, dizia que cuidava dos pobres, mas não enxergava o trabalho e a miséria de Márcia. Não iria para lá. Seria pior.
Márcia era negra, mais afrobege que negra, não era gorda nem magra, tinha os cabelos afros e os braços malhados pelas faxinas. Os traços de índio e de negro harmonizam o rosto com marcas de expressão do sofrimento e da desilusão de vinte e poucos anos.
Acordou não falou com ninguém, nem com a avó que estava de pé e com o radinho de pilhas velho na rádio Globo, no inferno do Padre Marcelo. Abriu o jornal, aquele jornalzinho vagabundo de vinte e cinco centavos do dia anterior, tomou um gole de café no copo lagoinha comeu um pedaço de pão com margarina. Leu as notícias de violência contra a mulher, ocorrência de trafico de drogas, sobre o governo e corrupção, lembrou-se do assalto na noite anterior e foi aos classificados.
Vendia-se de tudo, desde celulares, cabelos e dentes de implantes a carros... Negociação de dívidas e retirada do nome do SPC e SERASA, anúncios de mãe de santo e trago seu amor em 72 horas, pedidos de oração, de compra e venda de imóveis e alúgueis, e outros assuntos. Leu então os anúncios de emprego: balconista, cobradora, costureira, caixa de supermercado, nada se encaixava em seus sonhos. Já tinha trabalhado nessas coisas e sabia muito bem como era: oito horas de trabalho, salário mal remunerado, horas extra e mais desilusão. Tinha certa autonomia com as faxinas.
Mais uma página: MUSAS BH, LUX GIRL SCOTH BAR, GPGBH acompanhantes, Relax, Fernanda 23 anos, morena clara, pele macia, beijo na boca sem frescura (31)3422 154...; Teve vergonha de continuar a ler... Mas voltou os olhos para o final da página, tinha dois anúncios: “ACOMPANHANTE DE EXECUT (31) 3275 294... Contrata garotas de 18 a 25 anos c/ boa aparência p/ trabalhar. Zona sul, altos ganhos + benefícios” e o outro: REVENDEDORES (AS) Aqueçam as vendas ganhe dinheiro extra VIRGIN, IRON e HOT GIRL. Oferecemos linha completa de produtos eróticos. Aceitamos cartões VISA e MASTERCARD. (“31) 3082 789...”
Recortou a página e guardou no bolso, foi tomar um pouco de sol, era quarta-feira e não tinha nada para fazer até a tarde. Olhou ao seu redor e pensou nos anúncios, se transformasse em puta poderia ter uma vida mais ou menos pior? Será que teria dinheiro suficiente para poder estudar, comprar roupas novas? Será que ela era bonita o suficiente para ser puta? Será que iriam aceitá-la? Foi até o banheiro olhar seu rosto, sentiu-se bonita, mas não tinha boas roupas que valorizassem o seu corpo para uma possível entrevista para acompanhante. Pensou em pedir a vizinha uma roupa e maquiagem emprestada que a tornasse bonita e se perguntassem para ela a finalidade das roupas e da maquiagem? Será que saberia andar de salto alto? E quanto ao sexo, será que saberia fazer tudo e será que estaria disposta a fazer de tudo o que os clientes quisessem? Eram perguntas que ela fazia o tempo todo... Achou que não teria coragem praquilo, lembrou-se mais uma vez do episódio do ônibus, talvez àquela hora a coragem e escolha fizesse a diferença para sua vida.
Na sua casa não tinha telefone, teria de ir ao bar da esquina no telefone público para ligar e se ouvissem a conversa dela? Os bêbados que ficavam por ali espalhariam para toda a vizinhança a conversa? Será que tinha um cartão telefônico no bolso da calça? Pensou em pedir conselho para alguma amiga, mas quem? Achou que todo mundo olharia torto para ela. No bairro a noticia de que fulana ou cicrana era puta ou garota de programa corria rápido... Pensou na avó, nos irmãos, na mãe. Ninguém se preocupava com ela, a menos que tivesse dinheiro para dar em casa, estava ela em desespero.
Não queria pensar muito nas conseqüências senão ficaria o resto da vida naquele bairro, foi até o portão, num entra e sai daqueles que antecedem a tomada de decisão para a vida inteira. Respirou fundo. Viu sua vida passar como um filme. Olhou a página mais uma vez, era aquilo ou nada, tomou fôlego e foi ao telefone. Discou... Do outro lado da linha uma voz feminina atendeu, Márcia falou com voz embargada: “Alô? qual o endereço de vocês? Tenho interesse no anúncio, vocês parcelam em quantas vezes os produtos para revenda?”